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RAPINAS NA CRONÍSTICA MEDIEVAL PORTUGUESA

Texto de Ana Paiva Morais e Filipe Alves Moreira Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (NOVA-FCSH) / FALCO | Instituto de Filosofia (Faculdade de Letras da U. Porto e U. Aberta) / FALCO

Aimportância das aves de rapina, ou da caça com aves de rapina, e alguns dos significados simbólicos que lhes eram associados estão presentes em diversas histórias contadas por crónicas e outras obras literárias. Uma dessas histórias é narrada pela chamada Crónica Geral de Espanha de 1344, cuja versão original foi escrita pelo conde D. Pedro de Barcelos, filho ilegítimo do rei D. Dinis, e que se ocupa da história da Península Ibérica (“Espanha”, como então se dizia). É um episódio protagonizado pelo conde castelhano Fernán Gonzalez, uma figura histórica que viveu no século X. Sabe-se pouco da sua vida, mas, apesar disso, este conde é uma das mais famosas personagens da Espanha medieval e, como tal, é protagonista de muitas obras literárias e artísticas.

O episódio que aqui nos interessa explica, de forma condensada e ficcional, como o condado de Castela se autonomizou do reino de Leão. A história é a seguinte. Certo dia, o rei Sancho I de Leão convocou cortes, isto é, uma reunião com as mais destacadas figuras do reino, para decidir assuntos importantes. Fernán Gonzalez compareceu montado num belo cavalo e com um açor no braço, os quais provocaram a cobiça do rei, que não descansou até ficar com eles. Para isso, e após alguma resistência, acabaram por fazer um trato: o rei pagaria uma determinada quantia pelo cavalo e pelo açor num determinado prazo; findo esse prazo, e caso não conseguisse pagar, o preço duplicaria por cada dia que passasse. O rei não conseguiu pagar, e o valor foi crescendo desmesuradamente. A solução foi conceder maior autonomia ao conde e ao seu território.

Esta aparentemente simples história tem muito para nos dizer. Ela mostra, desde logo, a importância do cavalo e do açor enquanto símbolos de poder, ostentação e estatuto social. O conde é o único a aparecer nas cortes dessa forma, o que o distingue. Nem mesmo o rei pode rivalizar com ele, o que serve também para mostrar a supremacia de Castela sobre Leão. Outro significado frequentemente associado ao açor e que estará também aqui presente é o da ameaça, ou do desafio – o conde desafiando a autoridade do rei. A imagem do conde Fernán González dirigindo-se às cortes montado a cavalo e com o açor na mão é semelhante ao tipo de representações artísticas visuais da caça com aves. E Fernán Gonzalez é várias vezes representado assim na Idade Média.

Por outro lado, este episódio tem raízes ancestrais. Lembra muito a conhecida história do indiano que exigiu ao seu rei, em pagamento, uma quantia de grãos de arroz que resulta de se pôr um grão na casa inicial do tabuleiro de xadrez, e se ir duplicando esse número de casa em casa. Mas uma história muito semelhante à de Fernán Gonzalez é também contada sobre um chefe godo, numa obra bizantina do século VI, o que mostra bem a persistência, em diferentes épocas e culturas, de imagens de valorização do cavalo e do açor.

Um outro episódio, referido em obra posterior, a Crónica do Imperador Clarimundo, donde os reys de Portugal descendem, de João de Barros (1522), confirma a importância das aves de rapina no contexto da afirmação da exaltação de linhagens nobres, aqui em contexto mais abrangente. Trata-se de uma obra fantasista com uma dimensão metafórica, a que se pode atribuir um propósito de exaltação dos feitos dos portugueses na época da expansão. O protagonista, Clarimundo, avô do Conde D. Henrique, pai do primeiro rei de Portugal, Afonso Henriques, irá realizar feitos magníficos de grande significação, que antecipam as glórias destinadas ao reino de Portugal. A descrição das grandes proezas deste monarca na obra desenha um arco de coerência e de continuidade entre esse passado magnífico e o próprio momento histórico em que escreve João de Barros, numa lógica de glorificação do poder real, seguindo a linha do imaginário cavaleiresco arturiano.

A excecionalidade do destino de Clarimundo é indicada ainda antes do seu nascimento, através da ocorrência de um conjunto de fenómenos maravilhosos, sendo o principal uma caçada com falcões em que se assiste a um acontecimento extraordinário que causa o pasmo geral. Este episódio é sinal da influência da falcoaria nos romances de cavalaria e, em particular, manifesta a sua função de relevo na consolidação simbólica do poder real e, consequentemente, no aprofundamento da significação da história de Portugal.

No episódio que se salienta, o rei Adriano, pai de Clarimundo, possui um falcão nebri da sua estima particular. Numa caçada, chegado a uma lagoa onde havia várias aves, entre as quais

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2023-06-23T07:00:00.0000000Z

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